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MOVIMENTO DE SOLIDADRIEDADE IBERO-AMERICANA (MSIa)
19/02/2008
Halliburton-Petrobras: relações perigosas
O imbróglio envolvendo o arrombamento de um contêiner da empresa estadunidense Halliburton e o desaparecimento de computadores e um disco rígido contendo informações sobre os novos campos petrolíferos ultraprofundos da bacia de Santos não deve ser tratado como uma mera ocorrência policial.
Em primeiro lugar, cabe uma pergunta elementar: se as informações contidas nos computadores roubados eram “estratégicas e sigilosas”, como afirmou uma nota da Petrobras, ou “segredo de Estado”, segundo o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, como se justifica que esse material estivesse sendo transportado com tanta negligência, principalmente quando é público e notório o elevado índice de roubos de cargas nos portos brasileiros?
Segundo, por que informações tão importantes estavam sob a responsabilidade de uma empresa estrangeira, e não uma qualquer, mas a Halliburton, uma das flagships empresariais do Establishment dominante dos EUA? Embora ela seja uma das principais prestadoras de serviços especializados ao setor petrolífero mundial, não se pode ignorar que se trata de uma empresa-símbolo de um paradigma hegemônico que não apenas está na raiz da presente crise sistêmica global, mas também vem sendo crescentemente questionado, por subordinar o que deveria ser predominantemente patrimônio de povos e nações – recursos naturais, em especial – aos interesses corporativos de grupos privilegiados.
De acordo com a Petrobras, a Halliburton tem um contrato de quatro anos, no valor de 270 milhões de dólares, para realizar ensaios de pesquisas em reservatórios petrolíferos de altas pressões e temperaturas, condições semelhantes às da chamada camada pré-sal da bacia de Santos, na qual foram encontrados os campos gigantes de Tupi e Júpiter. Embora certos tipos de know-how superespecializados sejam rotineiramente subcontratados pelas grandes empresas petrolíferas, o novo patamar exploratório atingido pela Petrobrás com as recentes descobertas sugere que ela própria terá que se empenhar em dominar o mais rapidamente possível atividades que até agora podiam ser terceirizadas – ou correr o risco de ver tais surpresas desagradáveis virarem rotina.
Da mesma forma, é certo que, como uma estratégia de Estado, o governo brasileiro ver-se-á diante da necessidade de reconsiderar certos aspectos da política de abertura do setor petrolífero, além da providencial retirada de blocos adjacentes ao campo de Tupi da nona licitação promovida pela Agência Nacional de Petróleo (ANP) logo após o anúncio da descoberta. Como afirmou o diretor de Comunicações da Associação dos Engenheiros da Petrobrás (AEPET), Fernando Siqueira, em nota divulgada assim que se tornou público o sumiço dos equipamentos, tais fatos reforçam os argumentos para o cancelamento dos leilões das bacias sedimentares brasileiras. “Com os dados sigilosos nas mãos, os interessados terão informação privilegiada para disputar os leilões promovidos pela Agência Nacional do Petróleo e arrematar os melhores campos”, disse ele.
Ainda mais grave, segundo ele, foi o fato de a ANP ter entregue informações provenientes das áreas pré-sal antes do prazo legal de cinco anos. “A ANP divulgou tais dados para as empresas concorrentes. Tal atitude revela a falta de decência, falta de zelo e falta de patriotismo”, disse Siqueira. Além disso, acrescentou, o então superintendente de Gestão de Informações da ANP, Sérgio Possato, saiu da agência reguladora com os dados da Petrobrás debaixo do braço e os utilizou como mercadoria a ser negociada por sua empresa, que passou a vender o resultado das pesquisas da Petrobrás para empresas, na sua maioria multinacionais, no sexto e no sétimo leilões da ANP.
Entretanto, no atual modelo de abertura do setor, não é necessário recorrer a recursos ilegais ou pouco éticos para se obter o conhecimento privilegiado da Petrobrás sobre as bacias sedimentares brasileiras. Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo de 18 de fevereiro, um funcionário da empresa que preferiu não se identificar revelou que, nos últimos quatro meses, pelo menos 40 técnicos da área de exploração que trocaram a Petrobrás por outras companhias petrolíferas nacionais e estrangeiras. Tais técnicos, disse a fonte, “conheciam os procedimentos de transporte e detalhes da segurança”.
Embora seja difícil imaginar uma reversão ao status quo ante, em que a Petrobrás detinha o monopólio de exploração no setor, o fato é que o País terá que encontrar formas de resguardar os interesses nacionais de longo prazo, sem precisar quebrar contratos. Como analisamos na edição de 21/03/2007 da Resenha Estratégica (“Petróleo e gás natural: as ‘novas sete irmãs'”), uma das principais manifestações de recuo da tsunami “liberalizante” das últimas décadas é a grande transformação que estão sofrendo os mercados mundiais de petróleo e gás natural, caracterizada por uma crescente reafirmação dos Estados nacionais no controle das reservas e exploração desses recursos naturais.
Na ocasião, citamos uma reportagem do Financial Times (“As novas Sete Irmãs: gigantes de petróleo e gás se agigantam sobre rivais ocidentais”, 11/03/2007), a qual mostra que as novas regras da indústria e dos mercados petrolíferos estão sendo escritas por um seleto grupo de empresas estatais, que estão destronando as antigas gigantes multinacionais que dominavam tradicionalmente o setor.
“Esmagadoramente estatais, elas controlam quase um terço da produção mundial de petróleo e gás e mais de um terço das reservas totais de petróleo e gás. Em contraste, as velhas sete irmãs – que encolheram para quatro na consolidação da indústria ocorrida na década de 1990 – controlam apenas 3% das reservas”, observa o texto da jornalista Carola Hoyos.
De forma emblemática, as novas “Sete Irmãs” nomeadas pela jornalista são: 1) a saudita Aramco; 2) a russa Gazprom; 3) a chinesa CNPC; 4) a iraniana NIOC; 5) a venezuelana PDVSA; 6) a Petrobras; e 7) a malaia Petronas.
Segundo a Agência Internacional de Energia (AIE), nos próximos 40 anos, 90% da oferta de hidrocarbonetos virá de países em desenvolvimento, o que representa uma grande mudança em relação às últimas três décadas, quando 40% da produção vinha de países industrializados.
Tais fatos só fazem reforçar os argumentos em favor de uma ampla rediscussão da política petrolífera brasileira. Em um importante artigo publicado no Jornal do Brasil de 20 de janeiro (“Uma nova campanha do petróleo é nosso”), o ex-deputado federal e ex-diretor do Banco do Brasil, Léo de Almeida Neves, faz algumas importantes considerações a respeito:
É inquestionável que a prioridade nacional exige novas normas para exploração de petróleo no país, agora que o risco de encontrar petróleo tornou-se inexistente nos extensos 800 quilômetros que vão do Espírito Santo até a costa do Rio Grande do Sul.
A União terá de ficar com grande quinhão da renda do petróleo obtido (de 75% a 90% do valor real), dividindo essa receita com Estados e municípios sob a forma de tributo, de royalty, partilha ou o que seja. Talvez venha a ser o caso de convivermos com modelos diferenciados, conforme os blocos localizados em áreas com menor ou maior probabilidade de achar o precioso ouro negro.
Vejam o contra-senso. Sem necessidade de ter sócios, porque a Petrobras é a operadora, a única que dispõe de tecnologia de perfuração e logística em águas profundas (graças às pesquisas do CENPES), a nossa estatal vai fazer a felicidade dos acionistas da portuguesa Galp, da inglesa BG e da espanhola Repsol, que estão juntas na Tupi e em outras duas descobertas anexas.
A robusta arrecadação que a União vai auferir com o petróleo contribuirá para destinar verbas ao etanol e ao biodiesel, e aliviar a carga tributária de impostos indesejáveis. A fabulosa receita cambial que se avizinha servirá para acumular reservas, mas não deve inibir a exportação de bens industriais de valor agregado, mediante política cambial realista, nos moldes da que a China vem praticando.
Tupi e a camada pré-sal representam espetacular ganho, que se reveste de caráter intertemporal, projetando-se sobre as gerações futuras. Todavia, terá de haver modificação no marco regulatório do setor do petróleo e gás, permitindo a partilha da produção com a União, e as companhias (inclusive a Petrobras) que participarem da exploração não serão proprietárias do óleo. Este é o regulamento utilizado pela Rússia, Qatar, Iraque e Nigéria. O contrato de prestação de serviços é a praxe da Arábia Saudita, Irã, Kuwait e Venezuela. O Brasil usa o inconveniente contrato de concessão, com as concessionárias ficando donas do petróleo que descobrirem.
Outra conseqüência da descoberta do petróleo da camada pré-sal é que a Petrobras deverá reduzir o ritmo de seus investimentos no exterior, atualmente priorizando os Estados Unidos (Golfo do México), e concentrar recursos e esforços no Brasil. Os derrotistas, as cassandras, os detratores do nosso povo e do nosso país poderão arregimentar-se contra uma solução nacionalista para o petróleo. Bem que o Clube Militar, a OAB Nacional, o Clube de Engenharia do Rio de Janeiro, a ABI e outras entidades de prestígio poderiam mobilizar-se para essa luta de enfrentamento de grupos internacionais poderosos e de seus asseclas locais.
Dos desdobramentos desses acontecimentos, irão depender em grande medida as perspectivas de o Brasil adentrar as próximas décadas como uma Nação soberana adulta e consagrada ao bem comum de sua população, assim como comprometida com a promoção dos mesmos valores em âmbito global, ou como um adolescente político tutelado por interesses para os quais tais valores não passam de mera retórica.
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